O texto a seguir nasceu de uma conversa informal sobre política, pelo WhatsApp, com um grande amigo advogado e ex-aluno, que me lançou a seguinte pergunta: “Como perdemos, de maneira quase irrecuperável, a parcela cristã?”. A partir dessa provocação, passamos a discutir espiritualidade e a refletir sobre o papel que a extrema-direita tem desempenhado ao deturpar o cristianismo no Brasil.

Nos últimos anos, o Brasil tem assistido a um avanço preocupante de pautas reacionárias e conservadoras travestidas de fé cristã. Esse movimento, parte de uma estratégia deliberada de guerra cultural, instrumentaliza a religião como arma política e como linha de frente na chamada pauta de costumes. A narrativa religiosa foi capturada por setores da extrema-direita, impulsionada sobretudo pelo movimento neopentecostal e por segmentos evangélicos, mas também com a adesão expressiva de lideranças e fiéis católicos. Nesse processo, a mensagem central do Evangelho é distorcida e reduzida a um código moral seletivo, voltado para o controle social e cultural. 

O resultado é um cristianismo empobrecido, em que o mandamento de amar o próximo cede lugar a slogans de ódio, exclusão e intolerância, legitimando projetos políticos autoritários e reforçando preconceitos históricos.

Em nome de Deus, parlamentares e líderes defendem pena de morte, flexibilização indiscriminada do acesso a armas, discriminação contra minorias e até a disseminação deliberada de fake news, como amplamente documentado por agências de checagem. A imagem de políticos posando com arminhas contrasta radicalmente com o exemplo do Cristo bíblico, que pregou amor, justiça e solidariedade. 

Esse uso político da religião também aprofunda a intolerância contra outras formas de fé, em especial as religiões de matriz africana como Umbanda e Candomblé, mais enraizadas nas periferias e ligadas historicamente ao povo pobre e negro. Além de serem alvo de ataques físicos e simbólicos, esses cultos sofrem uma deslegitimação sistemática, reforçada por discursos que colocam qualquer religiosidade fora da perspectiva cristã como inimiga ou demoníaca.

O Cristo dos Evangelhos não foi um defensor da ordem opressora. Ao contrário, subverteu as hierarquias do seu tempo, posicionando-se ao lado dos pobres, doentes, prostitutas e estrangeiros. Condenou a hipocrisia dos religiosos que impunham fardos pesados ao povo e não moviam um dedo para aliviá-los. No Sermão da Montanha, em Mateus capítulo 5, exaltou os que têm fome e sede de justiça, os pacificadores e os perseguidos por causa da retidão. Esse ensinamento não se coaduna com o discurso político que se autoproclama “defesa dos valores cristãos”, mas que seleciona trechos bíblicos para legitimar preconceitos e políticas excludentes, silenciando sobre partilha, perdão e amor incondicional.

É fato que o povo brasileiro é culturalmente cristão. Ignorar essa dimensão foi um erro estratégico de parte da esquerda, que entregou o campo religioso de bandeja à extrema-direita. Nesse ponto, cabe desfazer um equívoco recorrente sobre Karl Marx. Sua frase “a religião é o ópio do povo” não foi um ataque simplista à fé. Naquele contexto, Marx reconhecia que, em sociedades de opressão, a religião podia ser tanto um consolo para o sofrimento quanto uma ferramenta de dominação. Ao reduzi-la a um insulto, setores progressistas fecharam canais de diálogo com a religiosidade popular e aprofundaram um abismo cultural que a direita soube ocupar com habilidade.

A ocupação desse espaço não se explica apenas pela manipulação deliberada de líderes religiosos. Ela também é fruto da ausência de um discurso progressista que trate a fé popular com respeito, sem abrir mão da defesa de direitos e justiça social. 

Apesar da apropriação conservadora, a tradição cristã também carrega exemplos de resistência e compromisso com a justiça social. O Papa Francisco, falecido em abril de 2025 aos 88 anos, deixou um legado marcado por críticas contundentes ao “capitalismo selvagem”, à destruição ambiental, às políticas de exclusão e às guerras. Defendeu uma Igreja voltada para os pobres e marginalizados e reafirmou princípios de diálogo e inclusão. No Brasil, a Teologia da Libertação teve papel central na organização popular e na defesa dos direitos humanos, especialmente durante a ditadura militar. Bispos como Dom Helder Câmara e Dom Paulo Evaristo Arns foram vozes que enfrentaram perseguições, protegeram perseguidos políticos e denunciaram injustiças. Essa mesma postura segue viva em figuras como Frei Betto, Leonardo Boff e Padre Júlio Lancellotti, que continuam atuando de forma incansável em defesa dos mais pobres e vulneráveis. Todos, em diferentes momentos, mantiveram vínculos claros com a Teologia da Libertação ou com setores progressistas da Igreja, colocando-se firmemente contra regimes autoritários e políticas excludentes.

O bolsonarismo, nesse cenário, assume características sectárias. Criou uma bolha informacional imune a dados objetivos, exigiu lealdade incondicional e demonizou a diferença. Parte desse público é, de fato, quase irrecuperável no curto prazo. Mas existe um segmento, aquele que se mobiliza para distribuir comida, abrigar pessoas e amparar os mais frágeis, que pode ser disputado. Reconquistar esses corações exige demonstrar que a mensagem de Jesus, centrada em amor, igualdade e justiça, está mais próxima de um projeto solidário e inclusivo do que da retórica de ódio dominante no conservadorismo político.

O documentário “Apocalipse nos Trópicos”, de Petra Costa, exibido no Festival de Veneza e disponível na Netflix, oferece um retrato contundente dessa instrumentalização da fé. O filme expõe as ligações estruturais entre líderes religiosos, políticos de extrema-direita e a corrosão da democracia, revelando que essa aliança é fruto de um projeto deliberado e meticulosamente construído.

Enfrentar esse movimento exige que o campo democrático abandone preconceitos contra a religiosidade popular e dispute seu significado. Isso implica falar de fé com a mesma seriedade com que se fala de economia ou democracia, resgatando a coerência entre espiritualidade e justiça social. Não se trata de ceder ao conservadorismo, mas de reivindicar o verdadeiro Evangelho, que é incompatível com ódio, mentira e opressão. 

O Cristo que caminhou com os pobres e marginalizados deixou um projeto, e esse projeto é de transformação da sociedade, não de sua manutenção desigual.